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Set23
"JARDIM DAS TORMENTAS" (1913) (Contos) - Carta-Prefácio de CARLOS MALHEIRO DIAS - [p. 6 de 15]
Manuel Pinto
[p. 6 /15]
AO SR. AQUILINO RIBEIRO.
«Em uma carta escrita a uma fidalga sua parenta, narrando a entrevista que tivera na sala dos carcereiros com um anarquista, a presa do Aljube, D. Constança Teles da Gama -- que triunfo para os Javerts militares da república uma tal captura! -- escrevia estas profundas palavras: «Afinal, ele é no fundo um pobre idealista como eu. Entre um anarquista e um carmelita há apenas a diferença de uma linha. Mas essa linha cobre um abismo.» Essa reflexão da neta de Vasco da Gama, que dorme numa dura enxerga, sob os mesmos tectos que abrigam as ladras e as mulheres perdidas, expiando o delito indefensável de haver pretendido suavizar as inomináveis barbaridades da justiça política, eu a posso aplicar, quase com propriedade, ao nosso caso.
Ambos nós sendo constituídos do mesmo efémero e frágil barro humano, e ambos sofrendo dessa nobre enfermidade da alma que é a sensibilidade artística, ambos professando o mesmo religioso culto pela Beleza e tendo educado a nossa inteligência na contemplação e na meditação das mesmas obras de arte, na leitura dos mesmos poetas e dos mesmos filósofos, como seria possível que a nossa visão de harmonia social resultasse diversa? Positivamente, aspiramos -- o antigo e heróico preso da esquadra do Caminho Novo, e o antigo e laborioso chefe de gabinete dum ministro -- a finalidades idênticas. Os nossos itinerários variam. A nossa marcha difere. Eis tudo. Enquanto um de nós, na ânsia de chegar mais depressa, fustiga os corcéis com a sua rédea de bronze e vai, como um furacão, derrubando o que encontra na passagem, o outro -- e este sou eu -- caminha com cautela, para não esmagar as formigas e não assustar as abelhas.»...
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(Continua)