«Raul Brandão, Brito Camacho, Agostinho de Campos, Alves Martins, Afonso Lopes Vieira, Augusto Gil, António Patrício, Bourbon e Meneses, Alfredo Brochado, Raul Proença, Gomes Monteiro, Samuel Maia, ultimamente Carlos Olavo, é densa a falange que a morte ceifou. Alguns pela sua rebeldia e inconformidade jazem no limbo. Outros penam no purgatório. Quantos gozam da luz radiosa?
Um destes estou a vê-lo subir e descer a calçada, alto e curvo, branco, de uma brancura de choupo esfolado, com a capa de Sgnarelo às costas e a bengalinha arcaica na mão, o criador do Gabiru. Tinha sido uma espécie de Luciano das ratas quanto aos pavores de além campa, um convulsionário de ideias macabras, e faleceu cercado de todos os fantasmas a que deu vida sobrenatural truculentíssima.Tinha medo do vácuo e deixou um vácuo bem assinalado no terreno das letras.
De outro, Carlos Amaro, também negreja a lacuna que ficou. Era um romântico impenitente com real e precioso talento. Condensava no sangue toda uma repugnância invencível para o esforço. Fosse insatisfação, molície nata, desdém olímpico pelo seu semelhante, não deixou mais que fátuas posto que coruscantíssimas centelhas.
Brito Camacho vinha encostar-se ali onde já Alexandre Herculano se encostava, à porta da Bertrand, a ver subir e descer o pitoresco arroio de mundanidades. Nos últimos tempos a sua inconformidade com o Universo traduzia-se mais em melancolia do que em borbotões de chiste e pilhéria. Supõe-se que partiu sem saudades.
Afonso Lopes Vieira, que escreveu a hereticíssima poesia A Cruz, da mesma índole que a Pavorosa Ilusão da Eternidade, gratuitamente atribuída a Bocage, já foi perdoado pela Igreja, cujos dignitários compareceram na erecção do seu monumento. Ainda bem. Perdoar aos mortos é altamente cristão e, quando se trata de altos espíritos, a própria coreia dos belos deuses pagãos, à testa Dionísios, aplaudiria. Há-de perdoar também a Fernando Pessoa, a Florbela Espanca, ao nosso grande Camilo, que ainda está no lugar onde reina a treva e o ranger dos dentes. Para isso é santa madre. Não preside à cristandade lusitana um nobilíssimo cultor das letras?
Carlos Olavo, que era um temperamento puro de democrata, incarnava um escritor primoroso. Dir-se-ia que o esplendor de um sombreava outro. Levou consigo, dir-se-ia, a alegria do mundo e a confiança na vitória de uma grande causa.
Há eclipses inadmissíveis na memória dos contemporâneos. As nebulosidades interpostas dissipam-se, porém, e os astros voltam a brilhar. Não é condição dos espíritos, como as brasas na noite, bruxulear e acender-se ao bafejo da aragem? Mas eu, olhando para o caminho percorrido, tenho a impressão de ter passado apenas através de uma via Ápia!»