ANTOLOGIA _ A1 ( I - 13 ) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Inversão Sentimental»
I - Jardim das Tormentas. 1913.
(...) «Como o caçador que, a desbravar terra, topa com tesouros escondidos, eu colhia fortaleza cultivando todos os domínios férteis de Paris. Com amor frequentei os cursos magistrais da Sorbona e andei por antiquários e museus em encantada romaria. Aprendi em Paris a arte de brincar com as ideias e a de erguer especiosas arquitecturas sobre princípios que não são mais sólidos que grandes bexigas pintadas. Nisto, se o meu eu se deixou penetrar, a minha experiência enriqueceu-se.
Nos ferros-velhos e galerias de arte contraí a doce tonteira da antiqualha. Hélia e Ninette, sua amiga mais chegada, agarravam-se-me ao braço e lá íamos todos três, à cata das igrejas veneráveis, perdidas nas betesgas, e das humildes imagens, adormecidas no cunhal dum palácio vetusto, corrigindo elas pelo coração a secura do meu espírito, empapaçado de Fichte, Guyau e toda a patuleia dos estetas. Vagueávamos sobretudo pelo Paris que não vem no Baedeker e onde se ouve o camartelo, demolindo a passo de carga.
Hélia não era um amador incondicional do antigo como eu; o seu subconsciente preferia, punha de parte. A falange satanizada das górgonas, nos flancos das catedrais, causava-lhe tanto pavor como a vista dos répteis no Jardim das Plantas. Os florões e as flechas góticas -- porque os seus nervos não podiam ouvir gritos agudos no espaço -- feriam-na como puas aceradas. Tão pouco compreendia a poesia estranha de Saint-Julien-le-Pauvre, igreja solitária e recolhida que eu amava como a cela suave, comunitária, de almas concentradas e dolorosas. Hélia tinha o horror da morte e em Saint-Julien respirava-se o relento duma religião que só se preocupa de bem morrer. Mas já no templo de Saint-Séverin folgava como corça em soalheiro bosque. Tudo aí falava a linguagem terrestre, vaporosa, mas sem abstracto. Arcos, colunas frágeis e longas como saudades, capitéis emaranhados, traduziam da vida a parte que não olha ao céu.» ...