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Alcança quem não cansa

Um Blog utilizado para a divulgação das obras de Aquilino Ribeiro. «Move-me apenas o culto da verdade, pouco me importando que seja vermelha ou branca.» [Aquilino Ribeiro]

Um Blog utilizado para a divulgação das obras de Aquilino Ribeiro. «Move-me apenas o culto da verdade, pouco me importando que seja vermelha ou branca.» [Aquilino Ribeiro]

Alcança quem não cansa

30
Nov23

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 13 ) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Inversão Sentimental»

I - Jardim das Tormentas. 1913.

Manuel Pinto

(...) «Como o caçador que, a desbravar terra, topa com tesouros escondidos, eu colhia  fortaleza cultivando todos os domínios férteis de Paris. Com amor frequentei os cursos magistrais da Sorbona e andei por antiquários e museus em encantada romaria. Aprendi em Paris a arte de brincar com as ideias e a de erguer especiosas arquitecturas sobre princípios que não são mais sólidos que grandes bexigas pintadas. Nisto, se o meu eu se deixou penetrar, a minha experiência enriqueceu-se.
Nos ferros-velhos e galerias de arte contraí a doce tonteira da antiqualha. Hélia e Ninette, sua amiga mais chegada, agarravam-se-me ao braço e lá íamos todos três, à cata das igrejas veneráveis, perdidas nas betesgas, e das humildes imagens, adormecidas no cunhal dum palácio vetusto, corrigindo elas pelo coração a secura do meu espírito, empapaçado de Fichte, Guyau e toda a patuleia dos estetas. Vagueávamos sobretudo pelo Paris que não vem no Baedeker e onde se ouve o camartelo, demolindo a passo de carga.
Hélia não era um amador incondicional do antigo como eu; o seu subconsciente preferia, punha de parte. A falange satanizada das górgonas, nos flancos das catedrais, causava-lhe tanto pavor como a vista dos répteis no Jardim das Plantas. Os florões e as flechas góticas -- porque os seus nervos não podiam ouvir gritos agudos no espaço -- feriam-na como puas aceradas. Tão pouco compreendia a poesia estranha de Saint-Julien-le-Pauvre, igreja solitária e recolhida que eu amava como a cela suave, comunitária, de almas concentradas e dolorosas. Hélia tinha o horror da morte e em Saint-Julien respirava-se o relento duma religião que só se preocupa de bem morrer. Mas já no templo de Saint-Séverin folgava como corça em soalheiro bosque. Tudo aí falava a linguagem terrestre, vaporosa, mas sem abstracto. Arcos, colunas frágeis e longas como saudades, capitéis emaranhados, traduziam da vida a parte que não olha ao céu.» ...

                                                                                   (continua)
29
Nov23

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 12 ) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Inversão Sentimental»

I - Jardim das Tormentas. 1913.

Manuel Pinto
(...) «A minha casa ficava na esquina da Place Sainte-Geneviève, ao alto duma rua íngreme e tortuosa, do tempo estreito dos prebostes. Dum lado havia assim todo o luxo esplêndido dos séculos, do outro a fácies sombria que simultâneamente revestiram passando. Face à montanha do Panthéon, de cunhais babilónicos e tiara de colunas, alcandoravam-se o rectângulo da torre lisa de Clóvis, a renda gótico-florentina de Saint-Etienne du Mont, a Biblioteca dos Genoveses, de frontaria placidamente conventual, uma escola, a mairie, e prédios altos -- armazéns de gente.

Durante a noite, a praça dormia em pomposo silêncio, raramente quebrantado. Debruçados à janela, com a cabeça a tocar a pele de fera, mosqueada a fogo, do céu nocturno de Paris, tanto a Surflamme como eu muitas vezes devaneávamos. Ela passava-me o braço tépido em torno do pescoço, e sentia-me como que ancorado no mar profundo, largo e calmo dum nirvana.

  -- Quando olho lá para baixo -- dizia ela -- e vejo tanta casa, tanta luz, tantas sombras, figura-se-me que estou num píncaro como aquele aonde o Diabo conduziu o bom Senhor Jesus. E também me sinto tentada.

  -- E quem é o tentador? Paris?... Eu?...

  -- Ninguém. Sinto um não sei quê que me tortura e me leva para longe de mim. Mas o que é e para onde, ignoro-o.»...

                                                                                   (continua)
28
Nov23

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 11 ) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Inversão Sentimental»

I - Jardim das Tormentas. 1913.

Manuel Pinto

(...) «A Surflamme, quando no crepúsculo da segunda tarde em que nos conhecemos tirou o chapéu, o espartilho e os sapatinhos sentada na beira da minha cama, não me amava por mim; amava-me na voluptuosidade que me ia dar. Não procurava a luxúria grosseira dos abraços, não; obedecia à tendência de se dispersar, de cumprir a sua obrigação de jucunda.
Foi, porventura, devido a isso que talvez eu a amasse; a sua parte mais nobre decorria do inconsciente, que eu tinha mesmo a impressão de sentir bater, como o volante pequenino dum relógio de pulseira. Todo ele era, aliás, um jardim viçoso onde ainda havia Adão e Eva e animais ferozes em liberdade. Se, devassando-o, adormeci nele, a culpa foi minha em não estar alerta.
Todos os seus movimentos, febres, nevroses eram vibrações harmoniosas desse inconsciente, cansado da vida reflectida e matemática do nosso mundo. O círculo que nos oprime, horas, espaços, necessidades, trazia-a mais magoada que o espartilho. Lembro-me ainda das suas revoltas contra o imóvel e o impossível, contra o dinheiro e a marcha lenta dos automóveis a 80 quilómetros à hora. Contra esse espaço rigidamente inalterável que separava a Place Sainte-Geneviève do Pavillon Bleu de Sainte-Cloud! Exclamava:  -- Porque havemos de ter este espaço a percorrer?!
Em mil anos as rapariguinhas como Hélia, radiosas e magnéticas, não terão esses espaços a andar; bastará querer, para o pensamento as conduzir celeremente às paragens do desejo como hoje as leva lá, de salto, em representação. O pensamento das Hélias do ano 3000 será uma liteira vertiginosa e confortável rolando fofamente no éter com as suas tiges insexuadas de sílfides.
Essa voz bárbara do inconsciente valeu-lhe a alcunha por que passámos a tratá-la. Vaidosa, julgava-se a fada do fogo e era a chama do pensamento. Nietzsche criou o super-homem, eu encontrei já feita a surflamme.» ...
                                                                           (continua)

 
27
Nov23

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 10 ) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Inversão Sentimental»

I - Jardim das Tormentas. 1913.

Manuel Pinto

(...) «Hélia era ignorante, mas a sua alma dir--se-ia um golfo adormecido onde vinham à tona de água deusas e sereias cantar árias maravilhosas. Coisas e seres surpreendia-os por um lado que eu não saberia focar, ou que meus olhos não viam. Andei com ela pela Europa e descobriu-me coisas que Mme de Staël não suspeitou sequer.
Hélia mentia com zelo e convicção, e eu aprendi com ela a arte sumamente útil de aparentemente deixar-me lograr pelos tolos e não descrer do que nos dizem os espertos e as mulheres, o que é cómodo. Enganou-me cem vezes, e habituei-me a domesticar a cólera, revezando-a pelo riso, e a amar as convenções desprezíveis.
Com ela atingi a máxima intensidade do eu: não espalhar a minha felicidade e fugir de pôr pé na zona alheia, tormentosa. Encontrei-me assim em equilíbrio com Paris e o meu tempo, e essa vantagem devo-lha.
Hélia era uma emanação perfeita do nosso século a vapor, a 100 à hora na terra, a 150 no céu. Encontrámo-nos uma tarde no metro, e na tarde seguinte a minha garçonnière apoderava-se dela e ela da minha garçonnière. A sua vontade de acção batia asas nervosas para igualar o pensamento; ainda lá não chegámos, mas Hélia será relativamente a esse porvir, o animal transitório e precursor. Foi por isso que lhe chamei a "Surflamme".
Singular, não se conduzia em virtude dum destino para um fim; a sua missão na terra era semear a voluptuosidade; e o seu mor prazer não era retirar gozo mas ser instrumento de gozo. O papel de Hélia, ainda que instintivo, aparecia-me eminentemente filantrópico, como os fontanários postados nas ruas para matar a sede de quem passa.
Pelo pitoresco, dava-me a impressão destas estátuas que estão nos jardins para embelezar. Em suma, enternecia-me ainda mais que o Bom Samaritano. Paris tem destes infinitamente pequenos, cuja função é dar o prazer sem preço, e que, por lastimável olvido, ainda não foram elevados à categoria de instituições como as concierges e os sábios da Academia.» ...
                                                                                                                                                      (continua)

 

26
Nov23

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 9 ) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Inversão Sentimental»

I - Jardim das Tormentas. 1913.

Manuel Pinto

Inversao sentimental.jpg

«Eu aprendi a amar, antes de as conhecer, estas silhuetas La Gandara que visitavam a minha serra nas caixas de fósforos de vintém, e nos catálogos que a mana Inês recebia das Galeries-Lafayette. As carnações robustas e vassoirudas da aldeia levavam-me, por este amor ilógico do contraste, a mentalmente sonhar com elas até ao regabofe dos regabofes.»...
                                                      
                                                                        (continua)
 

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