ANTOLOGIA _ A1 ( I - 41) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Tentação do Sátiro»
I - Jardim das Tormentas. 1913
(...) «Quando o reconheceu, ficou aturdida sem poder proferir palavra. Gil dizia-lhe, nem o próprio percebeu com que nexo, palavras que continham este pensamento:
-- Veja, senhora, que também sei ser atrevido!
Foi então que no primeiro movimento de repulsa, molestada do grande despejo, rompeu a gritar:
-- Socorro! Socorro!
Gil de Tavera nem tempo teve de explicar-se, nem sequer de tentar acalmá-la.
Acudiram logo as criadas e D. Sol dentro da compridíssima camisa de noite, que lhe dava um ar de outro mundo, magra como círio embrulhado no roquete dum encomendador de defuntos, ou uma carcaça fugida do Panteão dos Balbazes dentro da própria mortalha. Só ela metia medo. A uma e outras, que se benziam de espanto, disse Mafalda em voz que a exaltação fazia vacilar como luz à aragem da noite:
-- Este homem entrou aqui, à falsa fé, com maus pensamentos... Que saia para nunca mais!
D. Sol fez menção de lhe ir arrancar a espada, mas ele afastou-a com sarcástico jeito:
-- O senhor de Santisteban poderá perguntar por ela...
Uma das aias ia a sair com o propósito de chamar os criados, mas a ama, erguendo o braço, fez-lhe sinal.
Trejeitando nos lábios um sorriso, entre dorido e sardónico, Gil cortejou:
-- Que a sua graça me perdoe. Fui ontem cobarde, hoje aleivoso... Má sina a minha! -- e despediu.
Deixando-se levar no cavalo pelo caminho de Madrid, Gil de Tavera, mal se recobrou do passo em falso que dera, rompeu a maldizer da sorte, dos anjos e da Virgem Madre. Com pretender desforçar-se da canhestria, infamara o nome limpo dos Taveras, pois o rumor da sua deslealdade ia correr mundo.
A audácia que o levara até à beira da cama de D. Mafalda, se o resgatava da cobardia que o enxovalhara no amor-próprio, carregava-o agora de desonra para que não via apelação nem agravo. E, em sua alma amarfanhada, as palavras impiedosas de Mafalda eram ainda como punhais a alargar a chaga.»
(continua)