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Alcança quem não cansa

Um Blog utilizado para a divulgação das obras de Aquilino Ribeiro. «Move-me apenas o culto da verdade, pouco me importando que seja vermelha ou branca.» [Aquilino Ribeiro]

Um Blog utilizado para a divulgação das obras de Aquilino Ribeiro. «Move-me apenas o culto da verdade, pouco me importando que seja vermelha ou branca.» [Aquilino Ribeiro]

Alcança quem não cansa

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Dez23

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 41) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Tentação do Sátiro»

I - Jardim das Tormentas. 1913

Manuel Pinto

(...) «Quando o reconheceu, ficou aturdida sem poder proferir palavra. Gil dizia-lhe, nem o próprio percebeu com que nexo, palavras que continham este pensamento:
  -- Veja, senhora, que também sei ser atrevido!
Foi então que no primeiro movimento de repulsa, molestada do grande despejo, rompeu a gritar:
  -- Socorro! Socorro!
Gil de Tavera nem tempo teve de explicar-se, nem sequer de tentar acalmá-la.
Acudiram logo as criadas e D. Sol dentro da compridíssima camisa de noite, que lhe dava um ar de outro mundo, magra como círio embrulhado no roquete dum encomendador de defuntos, ou uma carcaça fugida do Panteão dos Balbazes dentro da própria mortalha. Só ela metia medo. A uma e outras, que se benziam de espanto, disse Mafalda em voz que a exaltação fazia vacilar como luz à aragem da noite:
  -- Este homem entrou aqui, à falsa fé, com maus pensamentos... Que saia para nunca mais!
D. Sol fez menção de lhe ir arrancar a espada, mas ele afastou-a com sarcástico jeito:
  -- O senhor de Santisteban poderá perguntar por ela...
Uma das aias ia a sair com o propósito de chamar os criados, mas a ama, erguendo o braço, fez-lhe sinal.
Trejeitando nos lábios um sorriso, entre dorido e sardónico, Gil cortejou:
  -- Que a sua graça me perdoe. Fui ontem cobarde, hoje aleivoso... Má sina a minha! -- e despediu.
Deixando-se levar no cavalo pelo caminho de Madrid, Gil de Tavera, mal se recobrou do passo em falso que dera, rompeu a maldizer da sorte, dos anjos e da Virgem Madre. Com pretender desforçar-se da canhestria, infamara o nome limpo dos Taveras, pois o rumor da sua deslealdade ia correr mundo.
A audácia que o levara até à beira da cama de D. Mafalda, se o resgatava da cobardia que o enxovalhara no amor-próprio, carregava-o agora de desonra para que não via apelação nem agravo. E, em sua alma amarfanhada, as palavras impiedosas de Mafalda eram ainda como punhais a alargar a chaga.»
                                                                                     (continua)

30
Dez23

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 40) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Tentação do Sátiro»

I - Jardim das Tormentas. 1913

Manuel Pinto

(...) «O primeiro sol amarelecia as vidraças, quando chegou a Piedras Rojas. Já o grande portão de entrada se mostrava entreaberto, mas fechado que fosse, à voz de Gil de Tavera, naquela casa, corriam trancas e ferrolhos, os mais defesos. Ao prender o cavalo à argola da parede, acudiu o porteiro, obsequioso.
  -- Deixa; o recado é urgente, e dá-se depressa... -- e despediu escada acima, afoito, como senhor que entra tresnoitado em sua casa.
Sabido dos andanhos, sem ruído, que o abafavam, além do recato com que ia, as alcatifas, atravessou salas e corredores que o silêncio e a serapilheira da madrugada emorneciam. Dos baixos da habitação um chapejar breve -- servilheta, porventura, ao saltar da cama -- mas ali, no piso nobre, a paz era imperturbável, com D. Sol decerto a sonhar-se de companhia com Onze Mil Donzéis nas alamedas do Paraíso. Na alcova dos senhores de los Balbazes, a porta estava apenas encostada. Após breve suspensão, mais de escuta que de receio, Gil entrou. Brandamente, a luz frouxa do sul esclarecia o leito, o tal thalamus thalamorum do casal cristão, talhado para as luxúrias santificadas, que aparentava em sua talha e alto dossel uma séria imponência. Aspirou o aroma ambiencial dos aposentos, tépido e langoroso, em que se condensam todos os voláteis humores do corpo. Na cama distinguiu à claridade difusa a oblonga mancha leitosa e aproximou-se. Com a ardentia da sazão, Mafalda dormia nua.
Era uma onda cor de leite e luar e cada parte, surpreendida em abandono, a rosa dum roseiral.
Gil debruçou-se para a carne de maravilha e primeiro admirou os pés, os pés que cabiam numa casca de noz e eram arteiros a correr; depois, demorados, mais demorados que crispação de vaga que vem de longe, os olhos percorreram desde a canela, de linha evasiva e delicada, às pomas, níveas cabeças de pombos, que desarmariam o cutelo dum ciumento. Levada, talvez, nas asas de sonho ligeiro, Mafalda suspirou.
Gil detinha-se no seu êxtase, indeciso e tentado. Pareceu-lhe que a respiração dela era serena como devia ser a dos anjos quando se apagam os luzeiros do céu e Santa Maria manda deitar. Mal se lhe sentia a arfada, decerto mais branda que a brisa entre as pétalas duma papoila. Uma das tranças coleava-lhe pelo tronco e ia desaparecer na face interior das coxas como longa e negra serpente que procurasse refúgio entre colunas de mármore. E a boca era fonte farta de voluptuosidade, de orgulho e soberania para lá da vida e da morte, a quem a beijasse. E Gil pávido, jogando num impulso os escrúpulos e receios para trás das costas, poisou a boca na boca assombrosa. Pesada foi ela para Mafalda soltar um gemido de criança e reagir em sobressalto. E, a gemer, acordou de todo e viu-se nos braços dum homem, erguida no ar como uma pena. O arranco que então deu foi tão forte que obrigou o violentador a soltá-la.»
                                                                              (continua)

29
Dez23

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 39 ) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Tentação do Sátiro»

I - Jardim das Tormentas. 1913

Manuel Pinto
(...) «Compreendia agora o meneio de Mafalda à beira do Sátiro tentador. Decerto que Alejandro possuíra o corpo, mas não o dominara; dominara a alma, mas não a possuíra. À puberdade em flor repugnavam a barba cã e o ânimo agreste do capitão de cavalos. Nela, todos os belos tesoiros da carne e do espírito estavam reservados para homem, igual a si, pelo menos em juventude. Por certo fora ele o eleito, ao menos, por um momento, o qual só por estúpida cobardia não soubera aproveitar. Agora, adeus!

Já semanas após semanas, em sua consciência brigavam luta de desespero o desejo sensual e o dever. Venceu aquele, como é de lei desde que o mundo é mundo, e no rescaldo germinou um amor envergonhado, destes que se evadem à própria sombra.

Nela, sem dúvida, a mística do amor tomara uma feição activa e determinada. Desejara, nada mais natural que cobiçar ser correspondida. Ante a imprecisão do amante, é próprio da mulher ser afoita. Com ela, à vaga satisfação do espírito, adivinhando-se amada, a natureza juvenil impõe a sua tirania. Mais os suspiros se perdem, mais os sentidos bradam. E Gil compreendia, compreendia agora os recursos de que o instinto de Mafalda se servira frente à estátua aliciadora. Fora até onde já era mais que ousadia ir; a ele o levá-la daquele traço em diante, pois que é escrúpulo da mulher, se não malícia do sexo, gostar de ser rendida, sentir na própria fraqueza sua desculpa e vitória.

Estas reflexões decorriam no cérebro de Gil lentas, em surdina, quase vagas, sob o zumbir de vespão da maforeira voz do Sátiro. E ele dava-se como réu de pelourinho, acima de tudo, pela torpeza com que se houvera naquela justa de galantaria.

Abrasado em febre, mal sua alma viu claro, passou uma noite de joelhos ao oratório de Nossa Senhora do Pilar. Tocara-o ela com a coroa na pia baptismal e, como madrinha, nunca lhe faltara com remédios em percalços da fortuna e da guerra. Naquela hora, o seu sorriso promissor irradiava, à chama da lâmpada perpétua, ainda mais benigno e amorável.

Do fundo de alma se lhe encomendou Gil, desventurado. Amava Mafalda de paixão pecaminosa, e não queria invocar para medianeira o Lírio de Jericó. Feia acção seria a sua, pois que ofendia o sexto mandamento e falseava a fé de amigo, embora dum desejo tão tirânico se não sentisse grandemente culpado, visto que rompera contra a sua vontade e não houvera forças humanas que o ceifassem. Em boa verdade, não lhe pesava remorso nem contrição no passo temerário que atravessava. Mas agora, não pedia à madrinha que lhe entregasse Mafalda, por ser uma fineza incompatível com a sua intemerata brancura, mas sim que o ajudasse a lavar-se da desonra em que ficara aos olhos de tão nobre dama. Que a Virgem o guiasse e prometia afastar-se da sedutora, ainda que tivesse de fugir para o cabo do mundo, e empregar em missas e obras de caridade todas as rendas de um ano.» ...

                                                                                                                (continua)
28
Dez23

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 38 ) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Tentação do Sátiro»

I - Jardim das Tormentas. 1913

Manuel Pinto

(...) «Assim fizeram os dois, insensivelmente indo dar ao sítio em que o Sátiro prelibava as voluptuosidades sem par. Na luz fosca da trovoada -- que já os relâmpagos chicoteavam os horizontes -- o sorriso lúbrico do fauno parecia despregar-se da pedra e vir enlabuzar as almas. E, jactancioso, mofava, ao mesmo tempo, de quem daquele jeito não sabia compartir. Bem firmes, as suas plantas caprinas tomavam a terra como palco do seu gozo, mais nada que palco; os braços, que agora ilaqueavam a ninfa, soltar-se-iam breve para mimar um epodo entre satírico e báquico; e já a expressão cínica dos olhos e dos lábios dizia à ninfa sujeita:
  -- Que mais é a vida?
Mafalda, que num assomo de nervos ia ripando e amarrotando as rosas, disse para D. Gil:
  -- Este grupo... este fauno tem um ar de escárnio que bole com os nervos. Hei-de mandá-lo fazer em estilhas...
  -- Que escárnio descobriu num mármore de tão belas formas?
  -- Não vedes?!... -- e esta resposta foi dada com sorriso tão de malícia e galantaria que a alma de Gil se abrasou.
  -- Cuido, sim, que está a dar uma lição... -- proferiu, volvendo para ela os olhos, que demorara no Sátiro, menos a estudar que a refazer-se do anseio de que se acompanhava a ebriedade que o tomou.
  -- Pode ser!
  -- ... a lição do que é tudo...
Mafalda baixou a cabeça para terra e o entendimento dele julgou ver claro. A medo, pegou-lhe da mão que sentiu abandonar-se; e, depois de a afagar, beijou-a. Espreitou-lhe a face e viu que se descoloria, afogueada, branca, branca como as açucenas, e nela leu sujeição. Abraçou-a pela cinta que lhe pareceu flectir-se... estreitou. E, ante aquela passividade que, todavia, a luz grave do semblante inculcava como incerta, com vozes de amor buscou a boca luxuriante, boca mais deleitosa que nem enflorada de rubras rosas. Num sobressalto -- vergonha, repulsa, sabia-o Deus -- Mafalda desprendeu -se e, às mãos ambas, cobriu o rosto.
Gil de Tavera soltou-a então, pálido, de garganta seca, mais tonto do que se o abismasse um raio. E, no instante que decorreu, ouviu-se a toadilha do ribeiro; em seus jardins os animálculos desferiam cânticos repassados de amor; o Sátiro instigava, com mais porfia e um aceno impudico de alcoviteiro, a provar dos frutos proibidos. Já a trovoada varrera por longe, rebalsando-se à flor do solo uma aragem branda, prenhe de rescendores e afagos.
Mafalda levantara o rosto e olhava ao largo. Iluminou-se-lhe dum sorriso desnevado, um sorriso como sol sobre a neve e, um segundo muda, despediu... deitou a correr.
Gil ficou pregado ao chão, atónito com o desenlace, a vê-la seguir caminho, altiva e desdenhosa. E, subitamente, o seu espírito enxergou; e, penetrando o sentido que era legítimo supor no jeito de confusão e no sorriso irónico de Mafalda, pungiu-o uma dor tão acerba que de bom grado aceitaria a morte se a morte, corporizando-se, se propusesse levá-lo.» ...
                                                                                 (continua)

27
Dez23

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 37 ) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Tentação do Sátiro»

I - Jardim das Tormentas. 1913

Manuel Pinto

(...) «Mafalda, fazendo da mão pala, olhou o astro pequenino perdido nos abismos do firmamento. O cavaleiro reparava nela e na estrela.
  -- Foge-me, foge-me da vista se a fito, D. Gil! -- proferiu ela.
  -- Tornai a olhar, senhora...
Mafalda, erguendo outra vez os olhos, quedou imóvel sob a imensa umbela do firmamento, de olhos tão fitos que breve as estrelas lhe pareceram abelhas alvoroçadas. E voltou a dizer:
  -- Foge-me sempre. Mas afigura-se à minha imaginação que é um gemido da Lira, ao passo que em volta as estrelinhas são risos de harmonia. Esconde-se, apaga-se e volve à superfície. Não sei porquê, lembra-me que esteja a soluçar.
  -- Tal qual a alma, senhora?
  -- Lá vai o Cisne... -- tornou Mafalda, pouco depois, quando ambos olhavam. -- Não parece que lhe toca com a asa? D. Gil, reparai...
Mafalda desviou o olhar e ouviu cantar os ralos, as rãs, a mágoa do rio, no festim do monte com o prado. Uma consolação infinita sucedia na terra à sentida necessidade das resignacões.
  -- Mafalda! Mafalda! Onde estás tu? A estas horas? -- gritava-lhe do fundo da cerca D. Sol.
  -- Estamos aqui, à beira do tanque. Aí vamos, tia.
  -- A vossa estrela, ou a vossa alma, senhora -- interpôs Gil -- está entre o colo do Cisne e a poeira doirada da Lira. Está na vossa inclinação dar-lhe destino...
Mafalda sorriu e, como se quisesse dar a entender que urdia com Gil uma pastoral sem mais significação que soprar ao vento bule-bules, volveu de novo olhos para a estrela, alpendrando-os da lua, que vinha já à altura dos ciprestes. Depois, deixando cair a cabeça, pronunciou em voz presumida de faceta:
  -- Então, meu senhor, que a leve o Cisne...
Gil ficou para o serão; e enquanto em torno, sobre as almofadas persas, as aias se entretinham em alegre folgar, pela primeira vez os olhos dele quiseram ser corajosos.
No momento de partir, sem que D. Sol desse conta, Mafalda pôs-lhe no sombrero uma pluma branca de neve, das mais airosas que vestem garças reais. E se não foi ao balcão, onde o luar fiava prata, vê-lo passar, é porque teve medo de que a sua audácia desse nas vistas. Sua tia D. Sol é que, desconfiada com o manejo, foi espreitar. Gil, metendo espora ao cavalo, desapareceu na azinhaga deserta, desprendidamente, como se atrás ficasse campo morto em que se lhe não atasse o novelo dos cuidados.
Mafalda, mais enervada quando se viu sozinha, voltou à sala para as rezas, mas se as ave-marias soavam nos seus lábios, caíam-lhe dos dedos, assim inertes e dormentes como no Inverno as lágrimas do caramelo, ao raiar do sol nos beirais.» ...

                                                                                                                    (continua)                                       

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