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Alcança quem não cansa

Um Blog utilizado para a divulgação das obras de Aquilino Ribeiro. «Move-me apenas o culto da verdade, pouco me importando que seja vermelha ou branca.» [Aquilino Ribeiro]

Um Blog utilizado para a divulgação das obras de Aquilino Ribeiro. «Move-me apenas o culto da verdade, pouco me importando que seja vermelha ou branca.» [Aquilino Ribeiro]

Alcança quem não cansa

31
Jan24

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 70) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «À Hora de Vésperas»

I - Jardim das Tormentas. 1913

Manuel Pinto
(...) «O Toiregas conduzira uma vagoneta na linha férrea, depois, vendido a um mascate arrastara uma vida nómada e miserável até cair no mester peneireiro de volver, de Ceca para Meca, missionários e irmãos do S. C. J. Atravessou a balbúrdia de cem mercados, em malta com burros e cavalos, para enfim certo dia seguir por uma interminável estrada fora, à arreata dum lavrador. Ao cabo, vieram os odres, a colmeia tresmalhada dos povos, nos domingos, a face de calhau com musgo do Isidro.
O Contrabandista, esse, perdera a memória dos trancos e barrancos por que passara. Um só, grande como trovoada, lhe ocupava a imaginação. Fora no tempo em que marchava pela calada da noite, atrás do amo, costeando sebes e despenhadeiros povoados de medos. Carrregado a mais não poder, grimpava pelas veredas dos lobos, de mansinho com toda a cautela, sem licença de espirrar nem de acordar o chão.
(...)
Uma noite, descia sorrateiro um passo escorregadio, adiante o dono em alparcatas, de orelha em riste, suspeitoso com o piso e os arbustos que lhe batiam nos olhos. Subitamente, vergastas de fogo e estampidos fuzilaram sobre eles; acudiram homens agaloados de todas as bandas. O amo caía por terra enquanto ele abalava pelo balseiro fora com os peitos abrasados. Apanharam-no adiante e levaram-no para lhe retalhar o corpo, onde sentia lume a lavrar. Aguentou semanas numa estrebaria muito vasta, a par de cavalos ferozes que o mordiam e desprezavam. Depois, quando já se sustinha nas pernas, apareceu um mariolão alto a olhá-lo muito, a palpar-lhe a barriga, a premir-lhe a cicatriz, e levou-o.
Sabia apenas isto, e era este episódio que no silêncio do estábulo contava ao Toiregas, que o admirava e temia, porque era mais corpulento e mau do que ele.
Após tais andanças, haviam adquirido aquela sabedoria em que não fica margem nem para dedicações nem para afrontas. Pouco a pouco, por lenta reacção, tinham chegado à calma indiferença dos mercenários. Por isso não professavam idolatria especial por Isidro, feroz como todos os donos, que lhes punha montanhas sobre o lombo e lhes fazia deitar os bofes nos longos caminhos adormecidos. O amor que lhes encerrava a alma era distribuído entre eles, numa velha estima de seis anos.
O que muito apreciavam em Isidro eram os cantares a meia voz, tão doces como a mãozita dos rapazes quando lhes punham ao focinho uma côdea de pão. Das vezes que ele garganteava 'Anda a guerra no mar Africante' pelas charnecas tristonhas, chegariam a adormecer se a serrilha os não arrepelasse ou o calcanhar não estivesse vigilante. As cantigas embalavam-nos, sobretudo quando, juntos com os machos dos belfurinheiros, marchavam em linha, sonora, santamente, debaixo da lua pascácia ou a virginal pureza das meias manhãs.»...
                                                                           (continua)
 

https://alcancaquemnaocansa.blogs.sapo.pt/glossario-sucinto-para-melhor-29693

Mascate vendedor ambulante de fazendas.
Belfurinheiros — tendeiros, vendedores ambulantes, bufarinheiros.
30
Jan24

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 69) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «À Hora de Vésperas»

I - Jardim das Tormentas. 1913

Manuel Pinto

(...) « -- Então, mulher, vende-se um macho -- balbuciou Isidro, de lágrima no olho, para Rosária que chorava como uma vide.
  -- Caiu a maldição em nossa casa!
Sombriamente, o almocreve aparelhou as bestas, assoou o Jaime, e despediu-se:
  -- Até logo, mulher!
  -- Aonde vais, cabo dos trabalhos?
  -- Vou ter com o Pinto, de Vilarinho; se ainda der as vinte e duas moedas e um quarto pelo Toiregas, tem besta.
Assim se chamava o macho, do nome do homem que o criara -- nome que nunca mais perdeu através da longa catréfia de donos que o tiveram à manjedoira.   
  -- Fica-te com Deus -- e, cavalgando e picando, soaram as lajes da calçada e riram as campainhas dos machos a sua tarantela alegre.
Estava um dia brando, sem sopro de aragem nem sol de crestar; grandes vagas de sombra arrastavam pela terra suas asas de corvos descomunais. Mas, pela folha, o canto das mondadeiras repercutia aos jubilosos tons da Primavera.
Um adiante de outro, os machos choutavam lestos e regalados. Das veigas, para o rio, subia um hálito perfumado de centeios a pular ao sol, e eles, tanto como as demais criaturas, eram sensíveis à natureza, tendo consciência da boa quadra com os caminhos enxutos e a serra vestida pelo maio tintureiro. Davam-lhes solércia e leveza as albas claras e entorpeciam-nos os poentes macerados. A hora quente do meio-dia era a que mais lhes instilava ânimo garboso e vivaz. 
(...)
Mal despediam do povo, palpitavam logo pela direcção e jeito do amo o destino da jornada. Conheciam de cor as aldeias em redondo, e as portas, enramalhetadas com loiro, das tavernas. Aí quedavam muitas vezes e esperavam o dono tempo sem fim. De princípio tiveram veleidades de chamá-lo e orneavam. Depois, reconhecendo quanto a sua voz era vã, permaneciam mudos, no Verão batendo a pata a sacudir a mosca, no Inverno, de olhos semicerrados a dormitar. E humildes e resignados aguardavam que o Isidro, volvidas às vezes muitas horas, voltasse trôpego das pernas, borracho e por isso mais brutal. Eles reconduziam-no sonolento, ou a cabecear no aparelho, com o mesmo passo fiel e de alma não menos submissa, sem errar um palmo, noite fora.
Ao pescoço, como uma abelha zunideira, tiniam as campainhas. Posto que impiedosas, tangendo-os sempre para a frente, gostavam de as ouvir. Eram a voz do mundo quando o almocreve, pelas noites escuras, desaparecia sobre a albarda, encolhido na sombra muda, que lhes falava dos seres universais. E, dim-dlim-dim, não erravam caminho.
À força de bater as cercanias, haviam-se familiarizado com estradas, caminhos e atalhos, quintas e casais, penhas e florestas. Tudo apreendiam os seus olhos e mediante eles tudo contavam à natureza e se contavam uns aos outros, nanja aos homens, que não eram bastante simples ou sagazes para os compreender. Nas horas folgadas, o almocreve desdobrava sobre eles uma cantiga, colorida como os giestais em maio. E tornava-se-lhes a carga mais leve e mais curtas as distâncias. Não tinham amor ao dono, sem que contudo lhe votassem ódio. Os homens eram todos os mesmos, sabiam-no à força de andar de mão em mão.» ...
                                                                                   (continua)

https://alcancaquemnaocansa.blogs.sapo.pt/glossario-sucinto-para-melhor-29693

Nanja   não, nunca.
29
Jan24

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 68) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «À Hora de Vésperas»

I - Jardim das Tormentas. 1913

Manuel Pinto
(...) «O Isidro fartou-se de proferir bem-hajas, e ela tornou:
  -- Diga: vossemecê tem meninos?
  -- Sim, menina. Tenho um rapaz do primeiro matrimónio, e agora três pequenos e uma miúda, fora o que a graça de Deus guarda na barriga da mãe...
  -- Pois eu trago-lhe aqui dez tostões para doces, para os meninos, que manda a minha senhora. Com o hóspede que agora chegou, as perdizes caíram mesmo do céu.
O almocreve rejeitou o dinheiro; a moceta meteu-lho no bolso, à fina força:
  -- Se não aceita é uma ofensa; é uma ofensa que faz.
Abalou dali sem saber o que devia pensar daquele passo. Mas ficou confiado, certo de que o delegado se lembraria da boa febra das perdizes na hora do julgamento.
Foi para juízo. As testemunhas pronunciaram contra ele um depoimento esmagador. Quando o senhor delegado se ergueu na cadeira, um hálito de ar fresco penetrou no peito cerrado de Isidro. Dali a pouco, porém, fazia-te branco como a cera. Entre outros dizeres que não compreendia, o senhor do púlpito invocava-lhe a mancebia, os maus precedentes, a ruim fama de que gozava no povo.
  -- Tanto mexeu comigo -- dizia mais tarde o almocreve com os olhos rasos de lágrimas para o Cleto que esperara por ele -- que cheirei mal.
  -- Apanhaste a carga toda -- soprou o outro arqueando as sobrancelhas, e pondo-se a marchar à frente que a companhia dele agoniava.
Assim foi. Cadeia a remir, custas e selos, não bastavam vinte moedas.
O Isidro meteu para casa a arrepelar-se. Que ia ser da sua vida? Encontraram Isaac que andava à caça e que se chegou a eles a informar-se. Ouviu, ouviu e disse-lhe com fero semblante:
  -- Pois você fiou-se lá no tal fidalgote das dúzias?... É dos tais que comem a isca e sujam no anzol. Sabe o que eu fazia para me tornar lembrado? Ia-lhe deitar o fogo à casa. Céptico e engulhado, o Cleto observou:
  -- Pois quem quer dares e tomares com os cães da justiça?! Só os pobres do entendimento. São capazes de rilhar a madre a uma égua e ela a galope. O Isidro ficava sem a última aguilhada de terra.
  -- Não tenho onde cair morto...
  -- Melhor para ti que nunca mais morres! -- respondeu-lhe o Cleto sarcástico, cozido com a pouca-vergonha.» ...
                                                                                                              (continua)
aguilhada

a.gui.lha.daseparador fonéticaɐɡiˈʎadɐ 
nome feminino

antiga unidade de medida agrária equivalente a quatro metros quadrados
https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/aguilhada

28
Jan24

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 67) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «À Hora de Vésperas»

I - Jardim das Tormentas. 1913

Manuel Pinto
(...) «Isidro, que se tinha por bisca velha, foi fazendo o jogo, certo de que a moça ia com o alembrete aos amos, porque tudo isto de criados são gente de levar e trazer.
Aí por volta das onze o fidalgo veio à porta:
  -- Então que deseja?
O Isidro, enrolando e desenrolando a carapuça, gemeu o recado quanto à demanda em que se achava envolvido por causa do cebolório. E, não se esquecendo de dizer que nunca nas eleições faltara com o voto ao sogro de sua senhoria, pediu-lhe para naquele aperto ser o seu bom padrinho.
O fidalgo escutava-o em silêncio, sem o encarar, teso como um pinheiro. Por fim, quando lhe ia a tornar resposta, apeou-se certo figuro na estrada, de cavalo suado, com arrieiro ao lado a suar também, todo frança e de vidro no olho. O senhor da Boavista foi direito a ele, ali ficando o Isidro plantado no chão, de boca aberta e assombrado.
Caía uma soalheira de rachar. O arrieiro passeou o lenço vermelho pela cara e sentou-se à sombra fresca, bem fruste, que a estava a tragar o meio-dia. O Isidro rapou da côdea com um cisgalho de queijo, que já lhe ladrava o estômago, e, trincando, perguntou:
  -- Quem é este graúdo?
  -- Homem, você não conhece o senhor doutor delegado?!
Deu-lhe o coração um baque; viera em boa altura para o fidalgo dispor o negócio a seu favor. E, in mente, batia o punho.
  -- Ah! Carvalha duma fona que te não livras de pagar as favas!
O arrieiro era de poucas falas e Isidro quedou-se para ali à espera, aborrecido e a malucar na morte da bezerra. Esperou, tornou a esperar, deu umas voltas pelo terreiro, espreitou as horas pela altura do sol, até que por fim -- já as casas davam sombra -- apareceu a moça com uma garrafa.
E deitando um copo de vinho para o arrieiro, em seguida outro para ele, disse-lhe:
  -- O meu senhor manda dizer que pode ir em paz. Como o senhor doutor delegado cá está de visita, hoje mesmo trata do assunto...» ...
                                                                                                              (continua)

antepositivo, do lat. frustum,i 'pedaço (de alimento), bocado; fragmento; pedaço de mineral de ouro', pelo it. frusto 'gasto pelo tempo; pedaço, bocado'; ocorre em cultismos do sXIX em diante: fruste (< fruste 'que apresenta um relevo gasto pelo tempo [diz-se de uma estátua, de um brasão, de uma moeda.]; rude, escasso', e este tb. com interveniência it.), frustear, frusto, frústula, frustulado, frústulo (< lat. frustùlum,i, dim. de frustum); para contraste, ver frustr-
"Dicionário Eletrónico Houaiss da Língua Portuguesa"
27
Jan24

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 66) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «À Hora de Vésperas»

I - Jardim das Tormentas. 1913

Manuel Pinto
(...) «Num dia de empecilho, os machos soltaram-se e, logo por desgraça, foram meter debaixo das ferraduras o cebolinho da Carvalha, no linhar do Pai-Moiro. Era a tia Carvalha uma sorbebona que nem com um dedo molhado permitia que lhe tocassem no que era seu. O Isidro, conhecendo-à légua, foi-se direito a ela, pronto a indemnizá-la do estrago; a mulherzinha, porém, mostrou-se exigente, pedindo mais que a valia do terreno. Ameaçou-o que ia para a justiça.
  -- Quem lhe pega? -- retorquiu o almocreve. -- O caminho está desimpedido.
Se bem o prometeu melhor o fez. Passante dias, andaram os louvados e os oficiais de diligências para cima e para baixo, e o Isidro começou a dizer mal de sua sorte quando os viu sair de casa dela a arrotar a vinho e salpicão com ovos. Depois, enquanto duraram os preâmbulos da demanda, os cabritos e as trutas choveram para a vila, não havendo tratante de justiça a quem ela não untasse a barbela! O almocreve deitou os olhos para a Quinta da Boavista e, uma manhãzinha, apresentou-se lá com cinco perdizes, pagas a onze vinténs ao Raposo de Vila Chã, e uma lebre que viera, esparvadiça com a geada, pegar-se-lhe nos arames.
Bateu à porta:
  -- Ó da casa!
Uma criadinha ruiva levou as perdizes, e volveu a dizer:
  -- O meu senhor está ainda na cama. Tem de esperar.
Sentou-se no patim, fartou-se de ver caras, de ouvir rumores de casa rica. Mudou de poiso, bocejou, pediu a Deus paciência e sorte. Decorrida uma grande meia hora, a moça veio acocorar-se a um canto da escada a depenar as perdizes.
Para matar o tempo, o Isidro puxou-a a paleio. E depois de se fazer rogada, por se tratar dum pilorda como ele, lá foi dizendo:
"Só tinha bem a dizer dos amos. O senhor era um fidalgo de muito respeito que punha a vila do avesso com uma perna às costas; e o chaço dos homens! Ali não havia que pôr pitafe."
E contou que fora levar-lhes a caça à cama, a sua senhora que gostara muito, e que, pondo-se a ver as perdizes que tinham esporão e as que não tinham, dissera: "Coitadinho deste perdigão tão bonito! Elas seriam todas mulheres dele?" A sua senhora tinha muita piedade, era mesmo a mãe dos pobres.
Depois de muito conversar, acrescentou:
  -- Sabe, os meus senhores são muito debiqueiros nas comidas. Apreciam a perdiz, lá isso apreciam, mas por trutas dão o cavaquinho. Dizem que a mãe delas é lá para os seus sítios?!
  -- Olhe, menina, foi-o em bons tempos. Hoje com a cal e a coca estuporaram tudo. Mas eu cá ainda sei onde elas andam.Tenho lá um compadre que é a alma dum pescador: dá o mergulho, e sem trazer uma em cada mão e uma terceira nos dentes não volta ao de cima.
A criada fitava-o com olhos de rata, muito espertos, e um dente de oiro que luzia.
  -- Pois ele já não há peixe; mas se seu amo me livra destes assados, a morte me coma se se não enfastiarem aqui de trutaria.» ...
                                                                                              (continua)
 

https://www.aulete.com.br/pitafe 
pitafe
s. m. || (prov. port.) defeito, censura, apodo: Quem quiser ponha-lhe pitafe. || V. bitafe.

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