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Alcança quem não cansa

Um Blog utilizado para a divulgação das obras de Aquilino Ribeiro. «Move-me apenas o culto da verdade, pouco me importando que seja vermelha ou branca.» [Aquilino Ribeiro]

Um Blog utilizado para a divulgação das obras de Aquilino Ribeiro. «Move-me apenas o culto da verdade, pouco me importando que seja vermelha ou branca.» [Aquilino Ribeiro]

Alcança quem não cansa

31
Mar24

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 117) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Revolução»

I - Jardim das Tormentas. 1913. Contos [onze].

Manuel Pinto
(...) «Os homens eram assim entre eles, sem possibilidade de se compreenderem e de se congraçarem. A ordem vivia desta repulsão surda entre os dois campos; e nem revoltas, nem a ciência, nem os filósofos encontravam remédio para a crise das desinteligências. O mal parecia invulnerável como uma geba congénita.

A filantropia, a assistência pública, e as instituições do bem eram a panaceia com que os seres piedosos e opulentos procuravam narcotizar as mazelas sociais, à maneira de curandeiros perante as mazelas físicas. O traço de união estava no resultado, porque «a coisa em si» se para estes constituía mester sincero, para aqueles pouco mais era que prática aleatória. Onde não houvesse a especulação, topava-se com a utopia, e sempre o dolo dos fracos. Subitamente, os sábios descobriram segredos, que os teólogos até aquela data supunham apenas pertencerem a Deus. E em vez de os explorar para bem do género humano, procuraram torná-los instrumentos de domínio ao serviço do orgulho.

E eis como a soberba dos homens, munida destes meios arcangélicos, revolveu, desencadeando-os sobre a terra, a face do mundo e a essência das almas. A morte implantou-se na parte mais soberba do planeta. Mas, agora que a angústia chamou o orgulho às suas fronteiras, ao homem oferece-se uma preocupação mais alta e mais constante que guerrear o semelhante: iludir as potências da morte e a fatal efemeridade da matéria. Pela primeira vez, a valer, se apercebeu da sua sombra; não competia com o reflexo dum reflexo.

A dor irmanou-nos; a impotência pulverizou a vaidade do eu; lavrados pela angústia e pelo sentimento da nossa fragilidade, pois que o mal mirrou na raiz, talvez que no fundo da dúvida que nos atormenta dormite a esperança do milagre, o milagre do espírito,  o «super-homem».

E com estas palavras a grande colmeia debandou, indo José e Rosa deitar-se na cama que as doces mães lhes prepararam.»

                                                                  (continua)
30
Mar24

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 116) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Revolução»

I - Jardim das Tormentas. 1913. Contos [onze].

Manuel Pinto
(...) «Os dois mundos, senhores e servos, mostravam-se bem delimitados por índole e por modos. Digladiavam-se forte e feio de parte a parte. Mas a solidariedade de cada um deles, no fundo, não era maior do que a das areias no areal. Ao primeiro passo do aflito, afastavam-se e deixavam-no afundir-se e perecer. O mundo dos senhores, à força de tiranias e convenções, era mais odioso e picaresco, e o mundo dos servos, com sua bestialidade, mais trágico e lastimável. A vaidade nuns e a ignorância noutros levavam-nos a cambalhotas, fluxos e refluxos que moveriam os deuses à piedade, se deuses existissem fora deles, além de meras expressões do seu medo e cegueira. Os patriarcas, esses terrícolas pacíficos e sábios das primeiras idades, tê-los-iam metido em jaulas como feras ou como energúmenos. Ah! o homem do século era um produto bem variado. Todavia celebrava-se-lhe a essência divina, e a ordem social reinante decantavam-na, decompunham-na em fórmulas como os seus teoremas de álgebra. Não obstante a guerra, a fome, a violência, a mentira, a contorção do instinto e dos sentimentos, invocavam a Providência, e a cada passo lhe rendiam perenes graças por tão bela cataplasma! A verdade -- esta verdade comezinha que é o segredo da nossa seriedade e não o problema que se pousa à nossa irreprimível ânsia de saber que prisão é a Terra e o que é o Cosmos -- não fazia caminho. Os sociólogos procuravam-na no complexo, quando ela estava na simplicidade; pretendiam caçá-la a óculo e bastaria buscá-la com as meninas dos olhos. A ciência crescia, alargava os horizontes; o progresso aqui era progresso. No domínio moral andava-se às arrecuas, cada vez para mais longe, cada vez para mais trevas.» ...

                                                      (continua)
29
Mar24

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 115) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Revolução»

I - Jardim das Tormentas. 1913. Contos [onze].

Manuel Pinto

(...) «Dizer-vos o que era o mundo? Misturai no almofariz a inveja, o ódio, a fome, o amor, a força, o oiro, a mentira, o sangue, a sensualidade. Agitai, triturai, e confundi molécula a molécula. Sopesai o todo: eis o mundo; retirai uma areia: eis uma alma.
A consciência não enxergava dois palmos adiante; a cada lance, antepunha-se-lhe uma teia inextricável contra que soçobrava a razão. Levaram milhares de anos os homens a erguer a paliçada atrás da qual se moviam; e era tão engenhosa que não lhe notavam a urdidura e tão densa que não consentia surtida. Como mala-arte era perfeita; o juízo humano tomara aquela direcção e marchava, marchava ventos em fora, cada vez mais cego e convicto. Quem desiludiria os homens?
Havia algumas coisas boas na terra, havia: as grandes descobertas da ciência; as realizações técnicas; as obras de beleza, radiosas como o sol que nasce; os amores que floriam nas almas; os beijos que cantavam em duas bocas. Mas que sombras, que traições em redor! Uma de minhas irmãs amava, amava de fundo amor certo moço forte e culto como ela; mas ele nascera pobre e não soubera tomar praça nas fileiras dos mandarins, e a razão de família desviou a enamorada do seu risonho querer. Casou com um armador que tinha cem leviatãos no mar e a velhice no sangue.
Eu via-a no seu palácio ressequida como uma flor de roseira a que o bicho daninho vai trinchando as raízes. O amor não passava disto: coisa de quitanda, insignificante no concurso dos interesses; a formosura e a graça -- artigos acessórios.» ...
                                 (continua)

Leviatã

n substantivo masculino 
1 Rubrica: mitologia.
monstro marinho do caos primitivo, mencionado na Bíblia, e cujas origens remontariam à mitologia fenícia; encarna a resistência oposta a Javé ou Jeová pelos poderes do mal
 Obs.: inicial freq. maiúsc.
2 Derivação: por metáfora, por extensão de sentido. Rubrica: política.
o Estado, como soberano absoluto e com poder sobre seus súditos que assim o autorizam através do pacto social [O termo foi retomado no sXVII por Thomas Hobbes (1588-1679) que assim designa o Estado moderno, não para marcá-lo como arbitrário ou despótico, mas para defendê-lo como poder absoluto.]
 Obs.: inicial maiúsc.
3 Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: política.
o Estado totalitário provido de vasta burocracia
 Obs.: inicial maiúsc.
4 Derivação: por analogia (da acp. 1).
ser ou coisa colossal, de aparência monstruosa
5 qualquer coisa de dimensões colossais
 

etimologialat. bíblico Leviathan, este do hebr. bíblico Leviathan 'espécie de monstro aquático; animal que se enrosca; crocodilo; baleia'; deve-se a Thomas Hobbes (1588-1679), com seu ensaio Leviathan (1615), em lat., a vigência moderna da pal., nos seus usos retóricos; f.hist. sXIII leviathão, 1836 leviathan, a1958 leviatã

"Dicionário Eletrónico Houaiss da Língua Portuguesa"

28
Mar24

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 114) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Revolução»

I - Jardim das Tormentas. 1913. Contos [onze].

Manuel Pinto
 

(...) «Meu pai nasceu industrial e explorava uma fábrica de canhões no Norte e grandes teares no Meio-Dia. Éramos dez irmãos e, graças à providência paterna, destinados a dominar. As nossas sinas, amigo Contim, foram diferentes! -- acrescentou Horner, sorrindo.
Contim, abanando a cabeça, confirmou:
 -- Em verdade, meu pai era rendeiro dum nababo que herdara latifúndios na Ibéria. Éramos seis rapazes e duas raparigas e, desde meninos, regámos a terra com o suor do nosso rosto, como rezava a Bíblia, em última análise o grande Código da Idade que agora expirou. 
-- Pois nós mandávamos, inundando o globo com os nossos produtos. Tínhamos a soldo um exército de homens, que é como quem diz, tínhamos em nossas mãos um feixe de destinos. Conhecemos o poder da riqueza; sentimos o regalo bárbaro de submeter e de esmagar; a fúria das greves alvoroçou-nos o sono com o incêndio das nossas fábricas. Havia miseráveis no mundo, sim, mas que nos importava, a nós que estávamos na boa da frescata e donos da cidadela doirada? As sedições, que aterrorizavam o espírito inquieto de meu pai, eram sempre inconsequentes. A terra, devido à fartura, até o arroto, duns, pululava de esfomeados que só pediam que os escravizassem. Os revoltosos, assim, eram dizimados como pelos pássaros as espigas mais altas no meio duma gândara de mato bravo.»...
                                                           (continua)

 
27
Mar24

ANTOLOGIA _ A1 ( I - 113) - JARDIM DAS TORMENTAS. 1913. Contos. «A Revolução»

I - Jardim das Tormentas. 1913. Contos [onze].

Manuel Pinto
(...) «Meus filhos: Em tempos que não vão longe o mundo não era positivamente uma coisa deleitável. Sem dúvida, havia nele horas boas, amores, triunfos, revelações de beleza, mas tão cercado de precipícios e de angústias estava tudo que o espírito expendia para atingir essas coisas um esforço ao lado do qual elas se apresentavam fúteis e mesquinhas. Daí, o chamarem-lhes ilusões e volver-se em desdém o ardor havido em conquistá-las. O lado mau da vida era o mais amplo, aquele em que se tropeçava se o olho não estava alerta. A prudência mandava que cada um se supusesse a atravessar uma floresta onde estão os leões a dormitar. Um descuido, uma imprudência, as pálpebras duma fera que se abrem mau grado nosso, e é-se imolado. A ordem social parecia-se com esta floresta. Passar sem ser arranhado pelas feras, era um êxito de velhacaria.

Com as leis promulgadas e as tiranias imanentes, a moral em voga mais repleta de hipócritas e falsos conceitos que um cadáver de larvas, abandonado à face da terra, se os homens, antes de virem à luz, tivessem o sentimento de seus destinos e a faculdade de ser ou não ser, a Terra seria um lugar vazio e inerte. Mas, achando-se na vida, uma série de circunstâncias levava-os a assentar praça num dos dois campos: os que mandavam e os que eram mandados. Todas as ânsias se circunscreviam a este dilema: oprimir ou servir os opressores. Contra ele faliam as revoltas ou acabavam invertendo-se os papéis. Mais forte que elas era o egoísmo no coração do homem.» ...

                                                                                                           (continua)

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