«O CENSOR DOS LUSÍADAS». Estâncias d' Os Lusíadas "a esladroar". «CAMÕES, CAMILO, EÇA E ALGUNS MAIS». Ensaios de Crítica Histórico-Literária. 1949. [ 7 ]
Cadernos Históricos (Vária). Direcção de Rocha Martins e Lopes de Oliveira. Edições Excelsior
«O frade, com o poeta no outro mundo, podia tripudiar à vontade sobre a Beleza.»
Coordenação de Vítor Aguiar e Silva, 1ª edição (Setembro de 2011).
«Nos Lusíadas, há pois que esladroar as estâncias em questão, dum barroco teológico incompatível com a bela ordenança, puro estilo Renascimento, do restante poema. Até sob o ponto de vista dimensional dos cantos, essa monda se impõe. Com efeito, à parte o Canto III que conta 143 estâncias, todos os outros orçam pela centena.»
O Canto IX terminaria com os dois versos:
88.
Assi a fermosa e a forte companhia
O dia quási todo estão passando
Nũa alma, doce, incógnita alegria,
Os trabalhos tão longos compensando.
Porque dos feitos grandes, da ousadia
Forte e famosa, o mundo está guardando
O prémio lá no fim, bem merecido,
Com fama grande e nome alto e subido.
«Tudo o mais é redundância, enfadonha prolixidade, desenvolvimento bastante abstruso do mesmo conceito, uma mastigação tão ao avesso do ático e conciso Camões.»
O canto X, finalmente, sem as onze estâncias (109 a 119) que começam:
109.
«Aqui a cidade foi que se chamava
Meliapor, fermosa, grande e rica;
Os Ídolos antigos adorava,
Como inda agora faz a gente inica.
Longe do mar naquele tempo estava,
Quando a Fé, que no mundo se pubrica,
Tomé vinha prègando, e já passara
Províncias mil do mundo, que ensinara.
110.
«Chegado aqui, prègando e junto dando
A doentes saúde, a mortos vida,
Acaso traz um dia o mar, vagando,
Um lenho de grandeza desmedida.
Deseja o Rei, que andava edificando,
Fazer dele madeira; e não duvida
Poder tirá-lo a terra, com possantes
Forças d' homens, de engenhos, de alifantes.
111.
«Era tão grande o peso do madeiro
Que, só pera abalar-se, nada abasta;
Mas o núncio de Cristo verdadeiro
Menos trabalho em tal negócio gasta:
Ata o cordão que traz, por derradeiro,
No tronco, e facilmente o leva e arrasta
Pera onde faça um sumptuoso templo
Que ficasse aos futuros por exemplo.
112.
«Sabia bem que se com fé formada
Mandar a um monte surdo que se mova,
Que obedecerá logo à voz sagrada,
Que assi lho ensinou Cristo, e ele o prova.
A gente ficou disto alvoraçada;
Os Brâmenes o têm por cousa nova;
Vendo os milagres, vendo a santidade,
Hão medo de perder autoridade.
113.
«São estes sacerdotes dos Gentios
Em quem mais penetrado tinha enveja;
Buscam maneiras mil, buscam desvios,
Com que Tomé não se ouça, ou morto seja.
O principal, que ao peito traz os fios,
Um caso horrendo faz, que o mundo veja
Que inimiga não há, tão dura e fera,
Como a virtude falsa, da sincera.
114.
«Um filho próprio mata, e logo acusa
De homicídio Tomé, que era inocente;
Dá falsas testemunhas, como se usa;
Condenaram-no a morte brevemente.
O Santo, que não vê milhor escusa
Que apelar pera o Padre omnipotente,
Quer, diante do Rei e dos senhores,
Que se faça um milagre dos maiores.
115.
«O corpo morto manda ser trazido,
Que res[s]ucite e seja perguntado
Quem foi seu matador, e será crido
Por testemunho, o seu, mais aprovado.
Viram todos o moço vivo, erguido,
Em nome de Jesus crucificado:
Dá graças a Tomé, que lhe deu vida,
E descobre seu pai ser homicida.
116.
«Este milagre fez tamanho espanto
Que o Rei se banha logo na água santa,
E muitos após ele; um beija o manto,
Outro louvor do Deus de Tomé canta.
Os Brâmenes se encheram de ódio tanto,
Com seu veneno os morde enveja tanta,
Que, persuadindo a isso o povo rudo,
Determinam matá-lo, em fim de tudo.
117.
«Um dia que prègando ao povo estava,
Fingiram entre a gente um arruido.
(Já Cristo neste tempo lhe ordenava
Que, padecendo, fosse ao Céu subido);
A multidão das pedras que voava
No Santo dá, já a tudo oferecido;
Um dos maus, por fartar-se mais depressa,
Com crua lança o peito lhe atravessa.
118.
«Choraram-te, Tomé, o Gange e o Indo;
Chorou-te toda a terra que pisaste;
Mais te choram as almas que vestindo
Se iam da santa Fé que lhe ensinaste.
Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,
Te recebem na glória que ganhaste.
Pedimos-te que a Deus ajuda peças
Com que os teus Lusitanos favoreças.
e acabam:
119.
«E vós outros que os nomes usurpais
De mandados de Deus, como Tomé,
Dizei: se sois mandados, como estais
Sem irdes a prègar a santa Fé?
Olhai que, se sois Sal e vos danais
Na pátria, onde profeta ninguém é,
Com que se salgarão em nossos dias
(Infiéis deixo) tantas heresias?
... embutidas a nosso ver pela mão do frade, e com o que o fio da narração poética nada sofre, ficaria reduzido a 145 = (156-11), por consequência ganhando também neste plano de perspectivas.»
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https://alcancaquemnaocansa.blogs.sapo.pt/os-lusiadas-poema-epico-dez-cantos-156305?tc=186099557332
Carlos Ascenso André 03.01.2025
Não sou muito entusiasta da ciência dos números aplicada à apreciação de obras literária (uma espécie de aritmosofia na literatura). Mas que há coincidências espantosas, lá isso há. Salta à vista, por exemplo, a quase equivalência dos cantos V e VI. Ora, o canto V é onde está um episódio determinante em toda a narrativa, o episódio do Adamastor, momento da vitória sobre os medos, mas também profecia da história trágico-marítima que viria depois; e o canto VI é o da chegada à Índia. Os dois juntos fazem o centro geométrico do poema. Jorge de Sena foi exaustivo neste tipo de análise e Vasco Graça Moura também (em alguns momentos) usou essa lupa. Saúdo a publicação que se faz aqui pela curiosidade de que se reveste e que abre pistas muito interessantes. Carlos Ascenso André